Aquele
era um percurso já habitual no seu dia-a-dia. Sofia gostava do ritual em que se
tinha tornado. O odor intenso a eucalipto, o céu tingido de azul só para si, o
sorriso das crianças gritado ao longe e as placas de cimento serpenteando a
seus pés, faziam-na sempre vestir a pele dum qualquer capitão cruzando os
oceanos da vida.
Mas
aquele não era um dia habitual, e Sofia sabia-o. O percurso era o mesmo. O
odor, o céu e as crianças eram os mesmos. Mas as placas de cimento, ainda que
as mesmas, hoje conduziam-na a um porto de abrigo antigo. Daqueles que descobriu
casualmente, num dia como qualquer outro do seu passado, e que pelas mesmas
razões fortuitas, o deixou para trás quase sem dar por isso. E só quando o
perdeu de vista, no curvar da península para mais um oceano a navegar, é que se
deu conta da saudade que deixou em si. Uma saudade tatuada com a tinta da
memória.
Faz
um ano que Sofia não vê Ruben. A imagem do seu cabelo sempre em desalinho
assalta-a inesperadamente. A ternura dos seus olhos, olhos que falam o que a
boca cala e as mãos não deixam de gritar. Sim, Sofia ainda se lembra bem do que
a encantou quando o conheceu.
Quando
Ruben telefonou “para tomar um café e saber como estás”, Sofia não pôde deixar
de acolher a doce possibilidade de voltar a estar com ele, talvez esta pudesse
ser a oportunidade de acalmar as dúvidas que a habitam, de encontrar as
respostas para as questões que a perseguem desde que se afastaram um do outro.
Agora,
enquanto os seus pés avançam, placa a placa, cimento a cimento, Sofia dá por si
mais uma vez, a visitar esse porto de abrigo antigo e a vislumbrar tudo o que
poderia ter vivido se lá tivesse decidido atracar. Vagas de memórias sucedem-se
no horizonte à sua frente, desenham no azul do céu imagens dispersas, instantes
partilhados, palavras proferidas.
O
bater do seu coração teima em atiçar as garras da angústia e do medo. O
pensamento rodopia num frenesim de dúvidas “Porquê que não funcionou entre nós?
O que se passou para nos afastarmos sem nunca termos falado? Tudo parecia fazer
tanto sentido… Será que ele sentiu o mesmo que eu? Não vale a pena pensares
nisso Sofia, o que lá vai, lá vai… mas porquê que nunca falámos?”. Perdida
nesta tempestade de incertezas, é com o breu dos seus olhos que Sofia finalmente
o vê caminhando a sorrir para si. Ruben pisando as mesmas placas de cimento que
ela.
Sofia
fica desarmada, tudo à sua volta desaparece. Só ela e Ruben existem nesse
momento. Mas os seus pés movem-se agora sem pressa, felizes e seguros de si no
seu caminhar. O cabelo longo e escuro parece querer brincar com o vento, alheio
ao sorriso que assoma radiante no seu rosto.
Ruben
está igual. O cabelo em desalinho, aquele andar desenvolto e assertivo tão característico
e estranhamente familiar. Ruben esfrega o rosto com a mão esquerda, como quem
tenta esconder o que lhe vai na alma. Sofia reconhece o gesto, é apenas o medo
que espreita. Dirigem-se a um banco de madeira acolhido na sombra fresca de um
carvalho. A cumplicidade que os une num breve silêncio é rapidamente invadida
pela emergência do que nunca foi falado. Sofia percebe nesse instante que não
mais quer abandonar este porto de abrigo, sente-o no fundo do seu ser. Perdeu finalmente
o medo e vestindo mais uma vez a pele dum qualquer capitão cruza os oceanos
imensos que os separam. “Deixaste crescer a barba…” diz enquanto se abraçam num
instante que se eterniza. Ruben passa-lhe a mão pelo rosto suavemente e sorri
“Estás bonita miúda, senti a tua falta!”.
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