25 maio 2013

Filme "À perdre la raison"

 "Os nossos filhos", título escolhido em português para o original "À perdre la raison", é a meu ver uma escolha infeliz para este filme magnífico!
Porque de facto trata-se de um "perder a razão", de um enlouquecer/adoecer lento, silencioso e tortuoso!
E representado com uma mestria de se lhe tirar o chapéu!
Os 3 actores são fabulosos, ela então merecer um Óscar, uma estátua qualquer!
Não é por acaso que esta obra de arte está cheia de prémios!
Mas aconselho a que não leiam nada acerca do filme, confiem, não se vão arrepender!
Link do IMDB 

11 abril 2013

Já podes ir...




O dia em que morri
E me despedi de quem um dia fui

Reencontrei-te em mim, tu que um dia morreste antes do tempo
Tu que ainda esperas o que não mais virá…
Hoje acolhi-te em meus braços e chorei…
Por ti, por mim…
Chorei a saudade, a dor, o desgosto, a injustiça!
E não te(me) quis largar e agarrei-te(me) com força!
Com que tenacidade!
Porque nunca antes te(me) tinha abraçado…
Esta menina esquecida e desamparada,
Que esta noite (me) reencontrei(ou) nos confins de mim mesma
A memória de ti(mim),
Sempre sozinha no meio duma multidão de gente
Gente que te(me) cuidava e te(me) prometia amar
Que se esqueceu de te(me) olhar
Gente também ela esquecida e desamada
E que nunca foi olhada,
Que não sabia como te(me) amar

Hoje é o dia em que eu morri e que te enterro a ti,
Que me despeço e que te(me) choro

Ficas bem minha menina?
Custa tanto deixar-te ir sem te poder dar uma história por viver…
Oh teimosia obstinada!
Oh esperança que mata lentamente…
Vais ter de renunciar, vais ter de aceitar…
Eu ajudo-te(me), agora estou cá eu

E hoje tem de ser, sabes?
Vou ter de te(me) deixar ir…

E enquanto choramos juntas, num abraço terno e doloroso de separação,
Deixo-te ir, deixo-te ficar onde um dia exististe e morreste antes do tempo
E deixo-te(me) ir com o abraço que nunca te(me) dei
Para que, pelo menos hoje, te tenhas sentido amada, acolhida e amparada

Porque o dia em que morreste foi o dia em que eu nasci
Hoje, que te acolho por uns segundos e te devolvo ao património da minha infância…
Não chores mais menina dos olhos de azeitona
Pois renasço eu para te poder continuar…

17 fevereiro 2013

A gota de água...



Leonor entrou em casa bem-disposta. Apesar da quantidade de trabalho extenuante que tinha tido naquele dia, o mesmo tinha sido proveitoso. Nicola estava estirado no sofá a ler um jornal.
- Olá amor, já jantaste? – cumprimentou-o enquanto despia o casaco com desenvoltura.
- Já! Deixei o teu prato no micro-ondas para aqueceres.
- És um anjo. Estou esfomeada. – desabafou, dirigindo-se à cozinha – Então e o teu dia?
Não obtendo resposta, espreitou pela porta da sala colorida de pósteres e insistiu.
- Como foi o teu dia?
- Foi bom e o teu? – respondeu Nicola sem levantar os olhos do jornal.
- Pode-se dizer que correu muito bem. Tive uma série de reuniões e conseguimos angariar mais uns patrocinadores! – gritou do quarto enquanto descalçava as botas altas e pesadas.
O apito do micro-ondas ressoou na cozinha. Deslizou em pantufas pelo corredor de tijoleira e agarrou no tabuleiro. Sentou-se no sofá aos pés de Nicola e embrulhou-se na manta vermelho fúcsia.
- O que estás a ler?
Após uns segundos sem resposta, Leonor divertida beliscou-lhe o dedo grande do pé escondido por umas meias grossas de lã.
- Hello? A tua magnífica e emocionante mulher chegou a casa.
- O que é? Não vês que estou a ler!
- Ui, hoje estamos maldispostos! Claro que vejo. Por isso te perguntei.
- Tens razão, desculpa. Estou a ler uma notícia sobre a ida do Barack Obama à Birmânia – atalhou Nicola continuando a ler sem levantar os olhos do jornal.
- E o que diz? – espicaçou-o Leonor antes de levar mais uma garfada à boca.
- Ai que chata! Deixa-me ler e já te explico.
- Chato és tu que não podes parar de ler isso e dar-me um bocado de atenção. É sempre a mesma coisa Nicola.
- Pronto, já terminei. Desculpa, mas é um assunto que me interessa.
- Ok, já percebi. Eu é que cheguei tão bem disposta a casa que me apetecia ser recebida de outra forma, para variar.
- Leonor, tu sabes que eu não ando bem. Mas isto passa, é só uma fase, prometo. Conta lá então como foi o teu dia.
- Não há nada para contar, foi um bom dia e estou feliz. Explica lá isso do Obama.
- Então? Vais amuar, é?
- Não estou a amuar, só não me apetece falar agora do meu dia, pode ser?
- Claro que sim.
O silêncio instalou-se. Leonor acabou de mastigar demoradamente a última garfada e engoliu-a temperada pelo ressentimento. Levantou-se e saiu da sala enquanto Nicola agarrava no jornal, esticando-se novamente no sofá.
Ela sabia perfeitamente o que dizia aquela notícia. Tinha-a lido ao pequeno-almoço, sentada na cozinha ao som do esquentador que aquecia o banho de Nicola.
Passando pela porta da sala em direcção ao escritório, olhou-o ali deitado. A aparente indiferença que lia nele consumia-a havia já vários meses. Não a entendia e exasperava-se consigo própria por não conseguir aceder ao que estava na origem deste muro que se erguia entre eles e não mais parava de crescer.
Ao entrar no escritório deparou-se mais uma vez com a sua secretária minada de migalhas e guardanapos sujos. Aquilo era demais para ela. Subiu-lhe um monstro pela garganta acima e ouviu-se berrar numa voz e volume que não eram os seus.
O que se passou a seguir, isso sim, era digno de uma notícia a ser lida por Nicola. Se ele ainda cá estivesse.

09 fevereiro 2013

O meu Super-Herói - Relato Autobiográfico



Recordo-me de olhar para cima, abraçada às suas pernas, e de pensar “ele é tão grande! Quando crescer quero ser como ele!”. Olhando hoje em dia para a altura a que ficam os seus joelhos, penso que eu não deveria ter mais de 4 anos de idade. Naquele tempo ele era o meu Super-Herói, que tudo sabia e tudo podia. Era enorme, forte, poderoso e inteligente, se é que uma menina de 4 anos tem capacidade para pensar as coisas deste modo. Mas é assim que o relembro. E foi assim que vi o durante muitos anos da minha vida.
Naquele tempo, e à luz de quem sou agora, parece que a vida saltava de memória em memória, como se ainda não houvesse a noção de uma continuidade. E esta primeira memória é, sem dúvida alguma, aquela que abre a porta a todas as que lhe seguiram.
Lembro-me das manhãs em que eu, depois de uma barrigada matinal de desenhos animados, corria feliz para o seu quarto e saltava para cima da cama, certa de que me aguardava uma festa de cócegas, gritos e gargalhadas. Era assim todos os Domingos.
Mais tarde, já o meu irmão tinha nascido e crescido como gente que já brinca, havia o ritual diário ao qual chamávamos “Brincar ao Leão”. Ele punha-se de gatas, enorme como era e tal qual um leão, e eu e o meu irmão provocávamo-lo com elaboradas fintas, correndo por entre as cadeiras e a mesa. A sala de jantar enchia-se de gritos nervosos e gargalhadas de felicidade. Quando ele nos apanhava, o que não era difícil porque na realidade era o que mais desejávamos, deitava-nos aos dois de costas no chão e, com garras e dentes, mimava-nos com rugidos ferozes recheados de cócegas que nos faziam rir e implorar por mais.
Depois, veio a minha primeira bicicleta. Adaptada a uma criança de 6 anos, tinha duas rodinhas extra que garantiam o meu parco equilíbrio. Foram dias gloriosos esses! Ele descia à cave e trazia a bicicleta para o largo em frente à nossa casa. Eu montava-a e pedalava radiante e segura de mim mesma porque tinha as rodinhas e a mão forte dele a acompanhar-me. Andámos assim algum tempo e um dia, com a promessa de que ele correria a meu lado segurando o banco para eu não cair, tirámos as rodinhas extra. Eu perguntava-lhe sempre “estás a segurar?” e ele tranquilizava-me com a sua voz vibrante enquanto eu pedalava como quem conquista o Mundo pela primeira vez. Num desses dias, perguntando-lhe mais uma vez se ele estava a segurar, percebi pela distância da sua voz que estava longe de mim e, olhando de esguelha, compreendi que me mentia e assustei-me. Contudo, a percepção de que eu continuava a pedalar livremente, sem cair, sem rodinhas e sem a ajuda dele, fez-me perdoar-lhe esta primeira mentira. E foi aqui que o meu Super-Herói começou aos poucos a perder a força no meu imaginário infantil. Mas este foi apenas o primeiro desencanto de muitos que se seguiram, desencantos esses tão importantes na vida de qualquer criança, vejo-o agora iluminada pela sabedoria dos anos que passaram.
Também me recordo das viagens para o Algarve: todos os anos no mês de Agosto lá íamos nós de malas feitas num Fiat 127 atulhado de excitação e expectativa, com o melhor condutor do Mundo ao volante. As férias eram sempre passadas em Lagos, em casa duns tios emigrados na Suíça. A viagem durava uma eternidade, ainda não havia a auto-estrada que existe hoje em dia. Embalados pela música do rádio ou pelas cantigas partilhadas, eu e o meu irmão não conseguíamos evitar a típica pergunta “quantos kms faltam?”. E ele, na sua imensa paciência lá nos ia debitando a quilometragem, afiançando que “estava quase”.
E assim fui crescendo ao longo do tempo, guiada pelo amor, carinho e confiança que o meu Super-Herói inspirava e transmitia.
Agora, já mulher feita, quando olho para ele, ainda recordo esse Super-Herói que alimentou o meu crescer e nutriu o meu desejo de ser grande, forte e inteligente. E revejo com ternura essa memória tatuada em mim quando ainda apenas atingia a altura dos seus joelhos.
Hoje, de olhos nos olhos, porque cresci e sou grande como ele (temos a mesma altura), vejo-o como ele realmente é: um homem com as suas fragilidades, medos e limitações. E apesar de há muito ter compreendido que afinal de contas o meu Pai não é um Super-Herói, e sim um homem que sempre fez o melhor que podia e sabia, continuo a acarinhar essa memória que trago comigo, pois sei que sem o Pai Super-Herói da minha infância eu não seria quem sou.

O Cesto das Maçãs



Era uma vez um menino e uma menina que tinham um cesto muito bonito repleto de maçãs brilhantes e saborosas. Havia maçãs de todos os tipos e feitios: maçãs do amor, maçãs da paz, maçãs da comunicação, maçãs da risota, maçãs da cumplicidade, maçãs das viagens, maçãs dos fins-de-semana, maçãs de cinema, de praia, de música, de amizade, de confiança, de ternura, de medo, de dúvidas, maçãs de honestidade, maçãs de respeito, de livros, de comida, enfim, todas as maçãs da vida a que os meninos e meninas têm direito quando decidem cuidar juntos do seu cesto.
O menino e a menina costumavam partilhar essas maçãs com grande prazer e tentavam garantir que esse cesto nunca ficasse vazio. Mas por vezes apareciam maçãs que começavam a apodrecer e que ameaçavam estragar todas as outras por contágio se não fossem rapidamente tiradas e tratadas. A menina era a que mais se preocupava com este cuidado. E gostava muito de manter o cesto limpo e arrumado, com as belas maçãs dispostas harmoniosamente e sempre prontas a serem partilhadas. O menino gostava mais de as baralhar e desarrumar. A menina não se importava muito com isso, chegava às vezes até a fazer o mesmo só para se sentir mais próxima do menino e aprender com ele a arte da desarrumação. E também porque para ela, limpar e arrumar as maçãs que partilhava com tanto amor com o menino, era algo que lhe dava muito gosto. Ela estava sempre pronta para o surpreender com a maçã mais bonita e saborosa, tentava sempre encontrar a maçã que ele mais iria gostar. O menino ficava sempre muito feliz e isso fazia a menina sentir-se no céu. O menino também se esforçava por estar atento aos desejos da menina, e no seu modo próprio também a surpreendia com as mais belas maçãs.
A menina adorava experimentar de todas as maçãs com o menino, chegando mesmo a sonhar como seria esta ou aquela, experimentar uma disposição diferente, imaginar e projectar como seria aquele cesto no futuro. O menino era mais avesso a essas divagações, receava que sonhar e projectar fosse algo de perigoso. A menina era quem mais se preocupava com as maçãs podres que por vezes teimavam em aparecer. O menino não se apercebia tanto, estava a atravessar uma fase muito difícil na vida dele. E na realidade para ele isso era uma chatice, quase como se ele ao não querer ver as maçãs que apareciam podres, imaginasse que talvez estas desaparecessem magicamente sem causar danos. E assim o menino afastava-se muitas vezes do cesto das maçãs, recusando e negando a realidade que teimava em impor-se, deixando muitas vezes a menina sozinha nesse cuidar.
De início ela não se importava de as agarrar, descascar, limpar e comer o que ainda estava bom, pois sabia que ele não estava tão capaz de o fazer, mas sentia sempre que era algo que deveria ser feito a dois, pois cabia a ambos garantir que o cesto nunca apodrecesse por completo. E por isso, quando sentia que era altura de o fazer com o menino, chamava-o e dizia-lhe “está uma maçã podre no cesto”, mas o menino ficava muito zangado com ela. Sentia sempre que ela lhe estava a dizer que era culpa dele.
O menino tinha dificuldade em compreender que ela apenas se queria sentar com ele para juntos cuidarem daquela maçã que ameaçava apodrecer o cesto todo caso não fosse pacientemente descascada, limpa e partilhada. A culpa não era de ninguém na realidade, eles eram apenas um menino e uma menina que estavam a aprender a cuidar do seu cesto de maçãs pela primeira vez.
Então a menina, sentindo-se muito triste e incompreendida, deixava a maçã podre no topo das outras maçãs, na esperança que o menino não se esquecesse do pedido dela. Mas ele quando via a maçã, pegava nela e colocava-a no fundo do cesto, tapada pelas maçãs saudáveis: não a vendo é como se não existisse, talvez chegasse a ficar boa outra vez. E a menina ficava sempre com muito receio, pois sabia que estava uma maçã podre, bem escondida, mas bem real, a contaminar o resto do cesto. Por diversas vezes pegou ela mesma sozinha na maçã e tratou dela com carinho e cuidado, pois sabia que os cestos de maçãs que os meninos e meninas de todo o mundo partilham, têm de ser diariamente cuidados e tratados pelos dois. Por vezes o menino deitava fora a maçã podre, esquecendo-se que assim ambos perdiam a possibilidade de provar aquela maçã tão específica e aprenderem com ela uma das muitas lições da vida.
Com o passar do tempo, a menina foi ficando mais desgostosa, pois temia não conseguir dar conta do recado sozinha. As maçãs podres teimavam em crescer bem lá no fundo do cesto. Então, um dia abordou o menino mais uma vez e disse-lhe “estão várias maçãs podres no cesto” e o menino ficou muito zangado e virou-lhe as costas, disse que não queria saber das maçãs, que a culpa não era dele. A menina nesse dia perdeu a cabeça e zangou-se, atirou-lhe todas as maçãs podres à cara. Ele foi-se embora muito magoado e zangado. A menina ficou sem poder explicar e entender o que aquelas maçãs podres poderiam estar a fazer à cesta deles. E o menino também. Mais tarde, nesse dia, a menina pediu desculpa e disse que queria falar com ele. O menino também pediu desculpa e encontraram-se, mas com a condição de nesse dia esquecer o sucedido e nada falarem.
E nos dias seguintes, tanto a menina como o menino não mexeram mais no cesto de maçãs. Mas a menina angustiava-se ao ver as maçãs podres junto das saudáveis. E esperava que o menino também se preocupasse, e que a seu tempo se juntasse a ela para tornarem o seu cesto de maçãs saudável novamente. Ela sabia que se todo o cesto apodrecesse nada mais haveria para eles cuidarem e partilharem em conjunto. E isso era algo que ela não queria, gostava demasiado do menino e sabia que ele também gostava dela.
A menina esperou e esperou. As maçãs foram apodrecendo, uma a uma, e o menino continuou a fingir que nada se tinha passado ou se estava a passar. A menina foi ficando cada vez mais triste e percebeu que ficar ali sozinha perante um cesto de maçãs a apodrecer só lhe fazia mal e foi-se afastando cada vez mais. Também ela virou as costas ao cesto, mas sem nunca esquecer o que se estaria a passar dentro do mesmo. O menino foi-se escondendo nos seus afazeres do dia-a-dia, como se nada passasse.
Finalmente um dia, o menino percebeu que a menina estava diferente com ele, mais distante e triste, e decidiu falar com ela. A menina aceitou esperançada. Mas quando se juntaram para olhar o seu cesto de maçãs e partilharem a maçã da paz e do entendimento, já nada havia no cesto: as maçãs tinham apodrecido todas… E foi com grande dor e tristeza que olharam pela última vez em conjunto aquele cesto que tinha sido outrora tão bonito e tão rico de maçãs vistosas e saudáveis. Já nada havia para cuidar. Num último gesto de despedida, juntos despejaram as maçãs podres do cesto e partiram para o mundo com a maior lição que a vida tinha para lhes ensinar: que um amor que não é cuidado e partilhado, tanto no bom, como no mau, acaba sempre por apodrecer silenciosa e insidiosamente, para no lugar dele nada ficar, a não ser a dor e o sofrimento de um vazio um dia antes soberbamente preenchido.