17 fevereiro 2013

A gota de água...



Leonor entrou em casa bem-disposta. Apesar da quantidade de trabalho extenuante que tinha tido naquele dia, o mesmo tinha sido proveitoso. Nicola estava estirado no sofá a ler um jornal.
- Olá amor, já jantaste? – cumprimentou-o enquanto despia o casaco com desenvoltura.
- Já! Deixei o teu prato no micro-ondas para aqueceres.
- És um anjo. Estou esfomeada. – desabafou, dirigindo-se à cozinha – Então e o teu dia?
Não obtendo resposta, espreitou pela porta da sala colorida de pósteres e insistiu.
- Como foi o teu dia?
- Foi bom e o teu? – respondeu Nicola sem levantar os olhos do jornal.
- Pode-se dizer que correu muito bem. Tive uma série de reuniões e conseguimos angariar mais uns patrocinadores! – gritou do quarto enquanto descalçava as botas altas e pesadas.
O apito do micro-ondas ressoou na cozinha. Deslizou em pantufas pelo corredor de tijoleira e agarrou no tabuleiro. Sentou-se no sofá aos pés de Nicola e embrulhou-se na manta vermelho fúcsia.
- O que estás a ler?
Após uns segundos sem resposta, Leonor divertida beliscou-lhe o dedo grande do pé escondido por umas meias grossas de lã.
- Hello? A tua magnífica e emocionante mulher chegou a casa.
- O que é? Não vês que estou a ler!
- Ui, hoje estamos maldispostos! Claro que vejo. Por isso te perguntei.
- Tens razão, desculpa. Estou a ler uma notícia sobre a ida do Barack Obama à Birmânia – atalhou Nicola continuando a ler sem levantar os olhos do jornal.
- E o que diz? – espicaçou-o Leonor antes de levar mais uma garfada à boca.
- Ai que chata! Deixa-me ler e já te explico.
- Chato és tu que não podes parar de ler isso e dar-me um bocado de atenção. É sempre a mesma coisa Nicola.
- Pronto, já terminei. Desculpa, mas é um assunto que me interessa.
- Ok, já percebi. Eu é que cheguei tão bem disposta a casa que me apetecia ser recebida de outra forma, para variar.
- Leonor, tu sabes que eu não ando bem. Mas isto passa, é só uma fase, prometo. Conta lá então como foi o teu dia.
- Não há nada para contar, foi um bom dia e estou feliz. Explica lá isso do Obama.
- Então? Vais amuar, é?
- Não estou a amuar, só não me apetece falar agora do meu dia, pode ser?
- Claro que sim.
O silêncio instalou-se. Leonor acabou de mastigar demoradamente a última garfada e engoliu-a temperada pelo ressentimento. Levantou-se e saiu da sala enquanto Nicola agarrava no jornal, esticando-se novamente no sofá.
Ela sabia perfeitamente o que dizia aquela notícia. Tinha-a lido ao pequeno-almoço, sentada na cozinha ao som do esquentador que aquecia o banho de Nicola.
Passando pela porta da sala em direcção ao escritório, olhou-o ali deitado. A aparente indiferença que lia nele consumia-a havia já vários meses. Não a entendia e exasperava-se consigo própria por não conseguir aceder ao que estava na origem deste muro que se erguia entre eles e não mais parava de crescer.
Ao entrar no escritório deparou-se mais uma vez com a sua secretária minada de migalhas e guardanapos sujos. Aquilo era demais para ela. Subiu-lhe um monstro pela garganta acima e ouviu-se berrar numa voz e volume que não eram os seus.
O que se passou a seguir, isso sim, era digno de uma notícia a ser lida por Nicola. Se ele ainda cá estivesse.

Sem comentários:

Enviar um comentário