Recordo-me de olhar para cima, abraçada às suas
pernas, e de pensar “ele é tão grande! Quando crescer quero ser como ele!”.
Olhando hoje em dia para a altura a que ficam os seus joelhos, penso que eu não
deveria ter mais de 4 anos de idade. Naquele tempo ele era o meu Super-Herói,
que tudo sabia e tudo podia. Era enorme, forte, poderoso e inteligente, se é
que uma menina de 4 anos tem capacidade para pensar as coisas deste modo. Mas é
assim que o relembro. E foi assim que vi o durante muitos anos da minha vida.
Naquele tempo, e à luz de quem sou agora, parece
que a vida saltava de memória em memória, como se ainda não houvesse a noção de
uma continuidade. E esta primeira memória é, sem dúvida alguma, aquela que abre
a porta a todas as que lhe seguiram.
Lembro-me das manhãs em que eu, depois de uma
barrigada matinal de desenhos animados, corria feliz para o seu quarto e
saltava para cima da cama, certa de que me aguardava uma festa de cócegas,
gritos e gargalhadas. Era assim todos os Domingos.
Mais tarde, já o meu irmão tinha nascido e
crescido como gente que já brinca, havia o ritual diário ao qual chamávamos
“Brincar ao Leão”. Ele punha-se de gatas, enorme como era e tal qual um leão, e
eu e o meu irmão provocávamo-lo com elaboradas fintas, correndo por entre as
cadeiras e a mesa. A sala de jantar enchia-se de gritos nervosos e gargalhadas
de felicidade. Quando ele nos apanhava, o que não era difícil porque na
realidade era o que mais desejávamos, deitava-nos aos dois de costas no chão e,
com garras e dentes, mimava-nos com rugidos ferozes recheados de cócegas que
nos faziam rir e implorar por mais.
Depois, veio a minha primeira bicicleta. Adaptada
a uma criança de 6 anos, tinha duas rodinhas extra que garantiam o meu parco
equilíbrio. Foram dias gloriosos esses! Ele descia à cave e trazia a bicicleta
para o largo em frente à nossa casa. Eu montava-a e pedalava radiante e segura
de mim mesma porque tinha as rodinhas e a mão forte dele a acompanhar-me.
Andámos assim algum tempo e um dia, com a promessa de que ele correria a meu
lado segurando o banco para eu não cair, tirámos as rodinhas extra. Eu perguntava-lhe
sempre “estás a segurar?” e ele tranquilizava-me com a sua voz vibrante
enquanto eu pedalava como quem conquista o Mundo pela primeira vez. Num desses
dias, perguntando-lhe mais uma vez se ele estava a segurar, percebi pela
distância da sua voz que estava longe de mim e, olhando de esguelha, compreendi
que me mentia e assustei-me. Contudo, a percepção de que eu continuava a
pedalar livremente, sem cair, sem rodinhas e sem a ajuda dele, fez-me perdoar-lhe
esta primeira mentira. E foi aqui que o meu Super-Herói começou aos poucos a
perder a força no meu imaginário infantil. Mas este foi apenas o primeiro
desencanto de muitos que se seguiram, desencantos esses tão importantes na vida
de qualquer criança, vejo-o agora iluminada pela sabedoria dos anos que
passaram.
Também me recordo das viagens para o Algarve:
todos os anos no mês de Agosto lá íamos nós de malas feitas num Fiat 127
atulhado de excitação e expectativa, com o melhor condutor do Mundo ao volante.
As férias eram sempre passadas em Lagos, em casa duns tios emigrados na Suíça. A
viagem durava uma eternidade, ainda não havia a auto-estrada que existe hoje em
dia. Embalados pela música do rádio ou pelas cantigas partilhadas, eu e o meu
irmão não conseguíamos evitar a típica pergunta “quantos kms faltam?”. E ele,
na sua imensa paciência lá nos ia debitando a quilometragem, afiançando que
“estava quase”.
E assim fui crescendo ao longo do tempo, guiada
pelo amor, carinho e confiança que o meu Super-Herói inspirava e transmitia.
Agora, já mulher feita, quando olho para ele,
ainda recordo esse Super-Herói que alimentou o meu crescer e nutriu o meu
desejo de ser grande, forte e inteligente. E revejo com ternura essa memória tatuada
em mim quando ainda apenas atingia a altura dos seus joelhos.
Hoje, de olhos nos olhos, porque cresci e sou
grande como ele (temos a mesma altura), vejo-o como ele realmente é: um homem
com as suas fragilidades, medos e limitações. E apesar de há muito ter
compreendido que afinal de contas o meu Pai não é um Super-Herói, e sim um
homem que sempre fez o melhor que podia e sabia, continuo a acarinhar essa
memória que trago comigo, pois sei que sem o Pai Super-Herói da minha infância
eu não seria quem sou.
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