28 novembro 2012

Entre chávenas de chá e meias de leite



Era domingo e os sinos da igreja acabavam de anunciar as cinco da tarde. A pastelaria central, situada mesmo em frente ao coreto da pequena vila, estava repleta. Famílias inteiras conversavam animadamente por entre dentadas em bolos fofos e açucarados. Amigas partilhavam coscuvilhices bebericando chávenas de chá e meias de leite. O ambiente quente e acolhedor, rendilhado por napperons coloridos, servia de palco a uma encantadora orquestra de vozes e tilintares de talheres e loiças.
Sentado a um canto, vagamente escondido pelos cortinados de veludo, Alcides, cofiando os seus mui aprumados bigodes vermelhos de que tanto se orgulhava, deleitava-se com o espectáculo. Desde que ali chegara, havia já seis semanas, que passava as tardes de domingo contemplando os habitantes da vila que o acolhera para uns tratamentos nas termas. O que mais lhe agradava era verificar que os frequentadores assíduos da pastelaria aos domingos à tarde eram sempre os mesmos. E sentavam-se sempre todos nos mesmos sítios, da mesma forma, comendo e bebendo o mesmo de sempre. Dir-se-ia que a observação do comportamento humano era o que mais o comprazia. A constatação semanal de que os habitantes daquela vila em particular eram a representação máxima da célebre ideia de que o homem é um bicho de hábitos encantava-o sobejamente. Defensor acérrimo desta premissa, e considerando-se “um homem de ciência”, retirava um especial prazer em procurar nos actos e comportamentos dos outros a validação dessa ideia.
Estava Alcides embrenhado nestes pensamentos e conjecturas quando uma senhora, já idosa e particularmente obesa, irrompeu pela porta principal da pastelaria saudando os presentes com um sonoro “boa tarde a todos”. Ao qual todos, sem excepção, responderam em uníssona polidez “boa tarde Tia Olinda”. Dirigindo-se à mesa ocupada por um grupo de mulheres também elas idosas, solicitou ao empregado “Sr. Castro é o habitual, por favor”. Alcides sentiu-se desorientado e ficou boquiaberto. Aquela mulher nunca ali tinha entrado, não fazia parte do cenário a que se tinha habituado. Era a variável parasita num estudo estatístico com que se comprazia faziam já seis semanas ou, para ser mais exacto, seis domingos. Não podia ser, o seu castelo de cartas acabava de ruir silenciosamente. E o remate irónico da situação é que ela tinha acabado de pedir “o habitual”.
Alcides demorou alguns minutos a recompor-se. Concentrando a sua atenção na Tia Olinda, como quem analisa uma espécie rara, começou por catalogar mentalmente a sua figura e depois a sua postura e comportamento. Informação vital já recolhida de cada um dos habitantes daquela vila ali presentes, todo o santo domingo. Era uma mulher de traços anafados com os contornos da boca marcadamente sulcados por rugas que mais pareciam duas setas apontadas ao chão. “Certamente indicadoras de um percurso de vida carregado de tristezas” concluiu Alcides. Dir-se-ia que estas duas setas pareciam exercer um efeito magnetizador nos outros. O próprio Alcides não conseguia despregar os olhos daquela boca desdentada e sem placa, que parecia afundar-se num rosto francamente redondo e rechonchudo. E enquanto falava e falava, fazia-se acompanhar por um gesticular espalhafatoso dos seus membros superiores. O tom de voz mantinha-se alto e vibrante, como quem protagoniza uma peça de teatro do alto de um palco para um público imenso e atento. Na verdade assim era. A orquestra anteriormente em decurso calava-se agora, aos poucos e poucos restando apenas um burburinho de fundo. A Tia Olinda era agora a protagonista daquele cenário.

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