Era
domingo e os sinos da igreja acabavam de anunciar as cinco da tarde. A pastelaria
central, situada mesmo em frente ao coreto da pequena vila, estava repleta. Famílias
inteiras conversavam animadamente por entre dentadas em bolos fofos e
açucarados. Amigas partilhavam coscuvilhices bebericando chávenas de chá e
meias de leite. O ambiente quente e acolhedor, rendilhado por napperons coloridos, servia de palco a
uma encantadora orquestra de vozes e tilintares de talheres e loiças.
Sentado
a um canto, vagamente escondido pelos cortinados de veludo, Alcides, cofiando
os seus mui aprumados bigodes vermelhos de que tanto se orgulhava, deleitava-se
com o espectáculo. Desde que ali chegara, havia já seis semanas, que passava as
tardes de domingo contemplando os habitantes da vila que o acolhera para uns
tratamentos nas termas. O que mais lhe agradava era verificar que os
frequentadores assíduos da pastelaria aos domingos à tarde eram sempre os
mesmos. E sentavam-se sempre todos nos mesmos sítios, da mesma forma, comendo e
bebendo o mesmo de sempre. Dir-se-ia que a observação do comportamento humano
era o que mais o comprazia. A constatação semanal de que os habitantes daquela
vila em particular eram a representação máxima da célebre ideia de que o homem
é um bicho de hábitos encantava-o sobejamente. Defensor acérrimo desta premissa,
e considerando-se “um homem de ciência”, retirava um especial prazer em
procurar nos actos e comportamentos dos outros a validação dessa ideia.
Estava
Alcides embrenhado nestes pensamentos e conjecturas quando uma senhora, já
idosa e particularmente obesa, irrompeu pela porta principal da pastelaria
saudando os presentes com um sonoro “boa tarde a todos”. Ao qual todos, sem
excepção, responderam em uníssona polidez “boa tarde Tia Olinda”. Dirigindo-se
à mesa ocupada por um grupo de mulheres também elas idosas, solicitou ao
empregado “Sr. Castro é o habitual, por favor”. Alcides sentiu-se desorientado
e ficou boquiaberto. Aquela mulher nunca ali tinha entrado, não fazia parte do
cenário a que se tinha habituado. Era a variável parasita num estudo
estatístico com que se comprazia faziam já seis semanas ou, para ser mais
exacto, seis domingos. Não podia ser, o seu castelo de cartas acabava de ruir
silenciosamente. E o remate irónico da situação é que ela tinha acabado de
pedir “o habitual”.
Alcides
demorou alguns minutos a recompor-se. Concentrando a sua atenção na Tia Olinda,
como quem analisa uma espécie rara, começou por catalogar mentalmente a sua
figura e depois a sua postura e comportamento. Informação vital já recolhida de
cada um dos habitantes daquela vila ali presentes, todo o santo domingo. Era
uma mulher de traços anafados com os contornos da boca marcadamente sulcados
por rugas que mais pareciam duas setas apontadas ao chão. “Certamente indicadoras
de um percurso de vida carregado de tristezas” concluiu Alcides. Dir-se-ia que
estas duas setas pareciam exercer um efeito magnetizador nos outros. O próprio
Alcides não conseguia despregar os olhos daquela boca desdentada e sem placa,
que parecia afundar-se num rosto francamente redondo e rechonchudo. E enquanto
falava e falava, fazia-se acompanhar por um gesticular espalhafatoso dos seus
membros superiores. O tom de voz mantinha-se alto e vibrante, como quem
protagoniza uma peça de teatro do alto de um palco para um público imenso e
atento. Na verdade assim era. A orquestra anteriormente em decurso calava-se
agora, aos poucos e poucos restando apenas um burburinho de fundo. A Tia Olinda
era agora a protagonista daquele cenário.
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