10 dezembro 2012

Contado ninguém acredita!



A tia Zeza morria de saudades dos sobrinhos.
Estar com aqueles quatro rebentos era sempre uma festa. Desde o Natal passado que não os via e agora que estavam todos em Lisboa era uma excelente oportunidade para os juntar e combinarem um programa.
As Galerias Twin Towers tinham sido inauguradas nessa semana e “que melhor desculpa para um convívio do que ir ver um filme de terror na próxima 6ª feira à noite?”, pensou para si enquanto o ar fresco e húmido do vento que passava sobre o rio Tejo a recordou que estava na hora de regressar a casa.
Conduzindo o seu provecto Citroen 2CV cor-de-laranja, à beira do fluorescente, deleitou-se a pensar em cada um deles.
A Joana, a mais velha, fazia-a lembrar-se de si própria, tinham os mesmos gostos: a leitura, o teatro e os concertos. Apesar de já estar na universidade, a tia Zeza guardava sempre aquela memória dela em criança, quando a apanhava em flagrante delito na cozinha a dar comida à Kikas, a Pinscher de estimação lá de casa.
O Paulo Joaquim, como o chamavam só para o arreliar, estava há 2 anos a fazer melhorias de notas para entrar em Medicina. Sempre fora obstinado e muito bem-disposto. “Era um bebé lindo, com aqueles olhos de azeitona que se derramavam sobre as bochechas enormes sempre que se ria”, recordava-se emocionada.
O Gustavo, “eternamente na lua, desde bebé que é um trapalhão”. Sempre muito acelerado e desajeitado, estava agora a estudar arquitectura em Lisboa e tornara-se um atleta de alta competição. Partilhava casa com a Joana em Oeiras. Era bom saber que aqueles dois sobrinhos se apoiavam um no outro.
E depois havia o sobrinho mais novo: o Mané. Apesar de já estudar no ensino secundário, continuava a ser o caçoulo da família. A tia Zeza não esquecia aquele menino de 3 anos, sentando debaixo da árvore de Natal, num pijama pintalgado de ursinhos amarelos, a gritar numa excitação radiante “descasca mãe, descasca!” enquanto as prendas eram abertas. Estava orgulhosa da sua prole emprestada pelas irmãs.
Todos adoraram a ideia.
Ficou combinado à porta de casa da Tia Zeza. A Joana e o Gustavo foram os primeiros a chegar. Vinham numa risota por causa da Lavínia, a romena que partilhava casa com eles. O Mané e o Paulo, como de costume, chegaram atrasados alegando que a culpa era dos comboios.
- Tia Zeza qual é o filme que vamos ver? – questionou o Mané.
- Joana afinal qual é o filme? – respondeu a tia Zeza.
- “O Pacto dos Lobos”.
- Uau, isso é o máximo! Tia Zeza, tu adoras lobos! – exclamou Gustavo.
- É um filme francês sobre uma criatura que aterrorizou durante meses uma província rural francesa – espicaçou Joana -, atacando crianças e mulheres, durante o reinado de Luís XV.
O frenesim instalou-se inundando o carro de gritos e gargalhadas. A tia Zeza piscou o olho de contentamento a Joana: todos eles eram fãs de filmes de terror. A noite prometia.
A viagem prosseguiu animada por mais uma das pérolas da Alzira, a empregada da tia Carminho, mãe do Gustavo e do Mané. Oriunda de uma aldeia nos arredores de Viseu, rechonchuda e de modos despachados no seu metro e meio de altura, a Alzira tornara-se num membro muito acarinhado por toda a família.
- Estávamos os três a almoçar e a Alzira estava a lavar a loiça – começou o Gustavo.
- Tu sabes tia Zeza, como são um pecado as almondegas da Alzira – exclamou o Mané.
- E ele disse à mãe “estas almondegas são um orgasmo” e a Alzira muito indignada vira-se para nós e diz…
- “Ó Sotôra o que é isso? Um orgresmo? Mas as almondegas não estão boas?” – imitou o Mané com o sotaque das Beiras.
Após duas voltas ao gigantesco edifício, que apesar de já inaugurado pecava pela ausência de sinalética à mistura de muito cimento por cobrir, pintalgado aqui e acolá por fios eléctricos descarnados, lá deram com o parque.
- Joana tens a certeza que isto já está aberto ao público? – gozou o Paulo.
- Claro ó Paulo Joaquim, não vês os outros carros estacionados – respondeu Joana a caminho dos elevadores.
- Epá, mas isto só tem botões com chave – comentou o Mané.
- Mas que centro comercial tão esquisito – riu-se Gustavo – devemos estar noutra dimensão.
- Não se vê ninguém, parece que estamos na Twilight Zone – galhofou o Paulo.
- Não deve ser aqui, vamos malta, há ali outros elevadores – orientou a tia Zeza.
A Joana foi comprar os bilhetes e os outros dirigiram-se à zona de restauração. Quando chegou ao pé deles já os tabuleiros estavam atestados de crepes salgados e quiches Lorraine.
- Ai não acredito, deram-me 2 facas – comentou o Gustavo enquanto rasgava o plástico que envolvia os talheres descartáveis.
- Não sabes que nesta dimensão as pessoas comem com 2 facas? – brincou o Paulo.
- Olha, eu também tenho 2 facas – acrescentou o Mané e desataram todos numa risada ao compreenderem que só tinham recebido facas para comer.
- Meninos menos algazarra – repreendeu a tia Zeza.
Depois do jantar, o Gustavo e a Joana foram à casa de banho e a tia Zeza quis ir espreitar as lojas com o Paulo e o Mané. Quando se reencontraram a Joana e o Gustavo vinham lavados em lágrimas.
- Ó tia Zeza não vais acreditar! O Gustavo entrou no WC das mulheres e foi expulso por uma velha louca!
- Então Gustavo, onde é que andas com a cabeça? – censurou com meiguice a tia Zeza.
- Ó tia Zeza a culpa não é minha, aquilo tinha bonequinhos.
- Este centro comercial não existe! – rematou Joana.
- Vá, já só faltam 15 minutos para a meia-noite. Querem pipocas? – ofereceu a tia Zeza.
Enquanto esta pagava a conta, a Joana e o Mané, os mais gulosos dos primos, levaram uma mão-cheia de pipocas à boca.
- Ó Joana as pipocas estão moles – segredou hesitante o Mané.
- O quê? Olhe, que fi-las eu mesmo hoje ao meio-dia! – atalhou o empregado ofendido. Tiveram todos de virar costas para ocultar as risadas que ameaçavam emergir.
- Tu ouviste aquilo Gustavo? As pipocas foram feitas ao meio-dia, é quase meia-noite, dah! – zombou o Mané.
Entraram na sala de cinema seguidos por um homem de fato e gravata que se dirigiu aos expectadores de uma sala quase vazia, composta pela tia Zeza, os sobrinhos e mais um casal sentado duas filas à frente.
- Boa noite! É com muito gosto que vos dou as boas-vindas à mais moderna sala de cinema de toda a Europa, equipada com o último grito de tecnologia audiovisual. Em nome dos cinemas UCI desejo-vos uma excelente sessão!
A projecção começou aos solavancos até que encravou definitivamente. Todos tiveram de se conter para não rir, afinal de contas o homem estava mesmo ali ao lado.
- Chamem o projeccionista! Ó óscar! – berrou o director, saindo da sala em alvoroço, para rapidamente voltar e se desfazer em desculpas pelo sucedido.
A situação era pura e simplesmente irreal e o raio do homem que não saía de ao pé deles. O Gustavo retorcia-se na cadeira. A Joana já tinha os olhos rasos de lágrimas. O Mané e o Paulo evitavam olharem-se para não se descontrolarem e a tia Zeza, entre soluços contidos e tentando manter o porte, fazia “xiús” atrás de “xiús”.
O filme começou com o plano de uma jovem camponesa a correr pela floresta. Ouviam-se grunhidos de um bicho que a perseguia e a dada altura foi apanhada pelas pernas. A imagem do corpo a ser abanado de um lado para o outro e atirado contra um pedregulho enorme, entre salpicos de sangue e gritos de horror, foi a tacada final para uma catarse de risos nervosos há muito contidos. O homem tinha acabado de sair e a tia Zeza e os sobrinhos desataram num coro de gargalhadas histéricas. Eles eram gritos, eles eram gargalhadas, eles eram lágrimas e socos nos braços dos assentos.
- A minha barriga não aguenta mais! – dizia Joana entre lágrimas.
- Cala-te, que eu já não sinto as bochechas! – riu o Paulo.
Quando o filme acabou, e com os ânimos mais serenos, tia e sobrinhos discutiam a noite surreal que acabavam de ter. O parque das galerias estava vazio, à excepção do 2CV da tia Zeza e de um outro carro estacionado mesmo ao lado. Quando se aperceberam de que no meio de uma garagem gigante, os únicos dois carros eram, por pura coincidência, o deles e o do casal presente na sala de cinema, a família Resende não aguentou mais e foram-se a rir até casa embriagados pela noite mais forinha da suas vidas, como dizia o Mané.
- Malta temos de repetir isto mais vezes! – zombou a tia Zeza.
- Sem dúvida, mas olha que contado ninguém acredita! – responderam em coro enquanto o 2CV deslizava barulhento pela Ic-19.

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