A
manhã começara cedo, com a habitual azáfama familiar. Três copos de leite com
chocolate e duas chávenas de café, cinco torradas acabadas de aquecer e um
prato de papas Cerelac. O ambiente
festivo e de excitação era já um modo habitual de começar o dia naquela casa.
Mas aquele não era um dia como os outros. Pela primeira vez em catorze meses,
Patrícia ia ter o dia todo só para si: Valter ia levar as crianças a passear ao
Jardim Zoológico.
Depois
destes saírem, respirou fundo e entregou-se a um banho de imersão com direito a
pétalas e velas perfumadas. Queria relaxar antes de decidir o que fazer. Depois
do banho, mimou-se com cremes e massagens, secou o cabelo negro e longo, e
decidiu deixá-lo solto. Colocou um vestido grená que nunca tinha usado e calçou
as sandálias de salto alto. Olhou-se no espelho e gostou do que viu. Reconheceu
a Patrícia de outros tempos que se tem mantido atabafada pela gestão familiar e
alargamento da mesma nos últimos anos. Ainda era uma mulher bonita e ela
sabia-o, mas escondida por debaixo dos habituais fatos de treino e ataviada
pelas mil e uma tarefas a que gostava de se entregar, às vezes esquecia-se. Aquele
dia, negociado com o marido há cinco semanas atrás, era uma recompensa bem
merecida. Desceu as escadas, agarrou na mala com alegre determinação e
dirigiu-se ao hall de entrada.
Um
vulto enorme por detrás da porta envidraçada sobressaltou-a. Não esperava
visitas. A campainha soou bruta e longa. Com um desconforto emergente e algo
inusitado, perguntou quem era. Uma voz seca respondeu “Afonso”. O coração de
Patrícia disparou à velocidade contrária do seu pensamento. Este petrificou nas
seis letras pronunciadas do lado de lá. Foi como se todos os órgãos do seu
corpo quisessem fugir e gritar, mas as pernas e a boca que o podiam fazer,
endureceram com um arrepio de gelo que lhe desceu como um disparo desde a nuca
até aos calcanhares. Um rude “Vais abrir ou não?” arrancou-a do transe. Abriu a
porta, e temerosa enfrentou o pai que não via há mais de vinte anos.
- Como te atreves a
aparecer aqui depois destes anos todos? – conseguiu vociferar indignada,
escancarando a porta.
- Vais-me deixar
entrar ou queres ter esta conversa aqui à porta? – respondeu ele impávido sem se
desviar do olhar furibundo de Patrícia. Esta afastou-se relutante, e com um
gesto contrariado indicou-lhe o caminho. Dirigiram-se à sala de estar e Afonso,
recusando sentar-se, foi colocar-se junto à janela olhando o jardim de costas
para a filha. Esta atitude exasperou Patrícia, transportando-a para as memórias
desagradáveis da sua adolescência.
- Importas-te de me
dizer o que vieste aqui fazer? – desafiou-o, mantendo-se em pé de frente para
Afonso. Este manteve-se em silêncio, olhando o vazio da janela como quem rumina
o que dizer. Patrícia percorreu-o de alto a baixo, as costas largas e ainda
erectas apesar da idade, o porte altivo e orgulhoso, nada tinha mudado. Ele
voltou-se para ela, e arrastando a prótese branca de marfim com desenvoltura,
cravou um olhar profundo no seu rosto. A longa cicatriz que o cortava ao meio
era a mesma, as rugas agora mais vincadas reforçavam o seu aspecto sombrio, mas
Patrícia vislumbrou uma mudança. Algo no olhar do pai estava diferente. Onde
antes só conseguia ler arrogância e frieza, via agora tormento, um tormento
imenso e penetrante. Esta constatação desarmou-a e antes que pudesse esconder o
que sentiu, Afonso aproximou-se dela, e com uma ternura até ali desconhecida,
disse:
- Não há perdão para
o que fiz, nem para a forma como vos deixei. Vivo atormentado por isso e quero
tentar corrigir os erros do passado. Estou aqui e coloco-me nas tuas mãos.
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